Casta, classe & o erro de Karl Marx.
No post anterior discuti a questão da igualdade social e, naturalmente, caí em uma outra questão: as classes. E desde Marx que a idéia de luta de classes é muito comum; e o que é pior, muitos não conseguem mais pensar fora desta idéia (ou ideologia).
Marx estava errado quando analisou as classes. Ele confundiu classe com casta.
Já explico melhor a diferença das duas. Antes leiamos as palavras de Ludwig von Mises sobre este assunto, encontrado no pequeno – e ótimo – livro As Seis Lições.
Quando Karl Marx – no primeiro capítulo do Manifesto Comunista, esse pequeno panfleto que inaugurou seu movimento socialista – sustentou a existência de um conflito inconciliável entre as classes, só pôde evocar, como ilustração à sua tese, exemplos tomados das condições da sociedade pré-capitalista. Nos estágios pré-capitalistas, a sociedade se dividia em grupos hereditários de status, na Índia denominados “castas”.
A idéia do “conflito inconciliável de interesses” (entre as classes) se opôs à idéia liberal da “harmonia de interesses”. Mas como Mises nos diz aqui, Marx só pôde ilustrar como isso se dava com exemplos de sociedades pré-capitalistas. Em seu Manifesto ele de fato cita o exemplo da Índia. Agora, quando ele analisa esses “grupos hereditários de status” tomando como se fossem classes, ele, Karl Marx, erra. E não só referente a Índia, mas a Idade Média também. Para a abordagem sobre a Idade Média leiam o livro do Mises.
Agora, qual é a diferença entre classe e casta?
A palavra “classe” nos traz a idéia de classificar, já a palavra “casta”, que é feminino de “casto”, significa puro, imaculado. No śloka temos a palavra varṇa traduzida como “classe”, embora seu significado original seja “cor”. E a idéia de cor, colorir nos leva ao significado de classificar, identificar, qualificar, portanto, mais perto de classe. Já a palavra “casta” não nos traz a idéia de “classificar”, de “identificar”, e por isso não seria uma boa tradução para varṇa; assim como ficaria muito mais próxima à idéia de grupos hereditários de status. Por quê? Ora, para a idéia de status hereditário existir, é preciso que esteja implícita a idéia de “imaculável”, senão, não teria sentido ser transmitida por herança. Sem falar que a palavra sânscrita para casta é jāti.
Estabelecida a diferença, vejamos em que o Karl Marx erra, especificamente.
O erro cometido por ele é o mesmo que cometemos hoje: tentar compreender a “casta” de algum modo imediato, a partir de nossa própria civilização (Louis Dumont). E não é só isso. A confusão criada por Marx em relação às castas é a mesma existente na Índia de hoje, não se entende muito bem (o estudo de Louis Dumont, Homo Hierarchicus, é a tentativa de se entender os aspectos das castas) como a situação chegou a este ponto.
A idéia que estas classes são hereditárias, que bastaria o indivíduo nascer numa classe e família específica (numa das quatro varṇa) para ser marcado com a insígnia de uma das quatro classes, é moderna, portanto, não tradicional. O que determina a classe de um indivíduo, como exposto no śloka do Bhagavad Gītā, são suas ações e qualidades.
Tradicionalmente uma pessoa que nasça numa família de intelectuais (brāhmaṇa), mas não tenha a qualificação para exercer tais atividades e, portanto, acabe exercendo outras, não será um intelectual, e assumirá uma classe segundo suas ações e qualidades. Há até uma gradação das qualidades e atividades que um indivíduo pode exercer segundo a sua própria classe – e isso é exposto por inúmeros textos antigos, como os Dharmaśastra e alguns Purāṇa. Uma vez que uma pessoa de uma das quatro classes tenha consciência e saiba que é impossível haver sociedade sem múltiplas funções e atividades, e nem todos conseguem exercer todas as atividades (que determinam cada uma das classes), seria um erro ver este sistema de divisão como anti-natural, ou pior, anti-social. Não tendo, assim, espaço para o tal conflito inconciliável de interesses cunhado por Marx; a não ser que por interesses entendamos qualquer coisa que prescinda dos méritos necessários, ou seja, que se tenha interesse em algo sem exercer as atividades e ter qualidades para tal.
(Algo como um operário (śudra) chegar à presidência (kṣatriya ) sem a qualificação para o cargo ou exercer atividades que o levassem até o cargo (último) pretendido.)
Parece-me que o grande “medo” de Marx, ao promover uma luta de classes, era o senso de hierarquia e também o individualismo, duas idéias prejudiciais para reestruturar uma sociedade sob o molde socialista. Sem esquecer que Marx sabia que a existência de ambas seria impossível extinguir.
Qualquer análise da luta de classe que não leve em consideração este erro de Marx, está sujeita a uma revisão séria. E muitas vezes me parece que a tal luta era só bravata de um revolucionário, alguém que no fundo sabia a verdade, mas tinha outras intenções.
2 respostas so far
Caríssimo Leonardo,
Em primeiro lugar quero dizer que leio com muito proveito tudo o que você escreve neste blog.
…
Gostaria de fazer uma pergunta a você que não tem nada a ver com o tema deste post.
Um conhecido meu afirmou que Guénon não sabia sânscrito, com base no seguinte trecho de Os Estados Múltiplos do Ser:
“A consciência é manifestadamente aquilo pelo qual o ser individual participa da inteligência universal (o buddhi da doutrina hindu), mas naturalmente é inerente à faculdade mental individual (manas)”
Ou seja, teríamos aí uma inteligência universal (buddhi) oposta a uma particular (manas).
Mas segundo esse meu conhecido, “manas” significa apenas “mente”.
Já “buddhi” seria uma das potencialidade de manas, a capacidade de entender.
Ele disse ainda que “manas” é muito genérico e que Guénon empregou a palavra de modo errado. A palavra que realmente se ajustaria ao que ele quis dizer é “manah” ou “manahsastha”
…
Enfim, ficaria muito feliz se você pudesse dizer se concorda que os termos tenham sido mal empregados.
Obrigado,
Charles.
Olá Charles!
Agradeço a visita e leitura. É uma honra ter leitores como você.
Vamos lá:
Sim, neste trecho (deste livro) o Guénon empregou mal os termos.
Porque “mana” e “buddhi” são coisas diferentes, mas digamos, da mesma categoria;
“mana” vem de “man” (pensar), “buddhi” vem de “budh” (despertar, inteligir).
Ambos são elementos (sutis; junto com “ahankara”) da matéria;
isso está descrito no Bhagavad Gita (7.4), portanto, não tem a ver com o que diz o Guénon.
Não tem oposição entre essas palavras de universal/individual.
Um dia escrevo um post sobre isso!
Grande abraço.